"A verdadeira viagem não está em sair a procura de novas paisagens, mas em
possuir novos olhos" (Marcel Proust)







quarta-feira, 30 de março de 2011

Abrindo "Parênteses"

Aos distraídos, "Parênteses" é um quadro especial onde falo sobre o meu embarque atual. Recaptulando, de fevereiro a outubro de 2010, realizei o meu primeiro contrato como Bar Waitress. Depois de passar dois meses no MSC Orchestra, fui transferida para o MSC Armonia, onde estive por mais um semestre. Fiquei em casa por quase seis meses, e agora estou no MSC Música fazendo o cruzeiro de travessia para a Europa, desta vez como cantora.
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Obviamente, não foi de paraquedas que eu caí nessa profissão. Estudei quase dez anos de técnica vocal italiana e tive várias experiências musicais marcantes, apesar de nem todas terem sido bem - ou até mesmo - remuneradas. Quando atingi a maior idade, deixei a música em segundo plano e passei a priorizar a minha graduação em Comunicação. Costumo pensar que, cantor que é cantor, independente de tempo e local expressa-se cantando. Tanto em momentos tristes como felizes, cantar chega a ser involuntário. Foi assim que as pessoas a bordo perceberam que eu dava voz a canções de forma semelhante a um profissional, até descobrirem que eu fazia parte deste meio. Desde então, a esperança de acordar a "música" que dormia dentro de mim me fez pausar o resto dos meus planos, e dar a mim e a "ela" uma nova oportunidade de seguir juntas.

Parênteses I: Novamente a bordo


Já fazia muito tempo desde meu último tranquilo sono. Aguardar uma data de embarque é o mesmo que esperar o resultado daquela tão esperada entrevista de emprego. Você fica de olho no telefone e na caixa de e-mails, roendo as unhas de tanta ansiedade e chegando a pensar que talvez seja a hora de aplicar o plano B. A princípio, o combinado era que eu embarcasse no porto da minha cidade. Sim, a última parada do MSC Música antes de fazer a travessia para a Europa será em Fortaleza, dia 2 de abril. Infelizmente, de acordo com o que me fora informado - e pelo que entendi, as autoridades locais não permitem alguns tipos de embarque naquele porto. Ou seja, tive que seguir ao Rio de Janeiro para conseguir embarcar.
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Diante de tantas adversidades que a vida impõe, as piores são as que o nosso pessimismo energiza. Então, mesmo quando a mudança não for tão boa quanto se espera, o melhor é encarar o fato como uma chance de novas possibilidades. Foi dureza aprontar tudo em cinco dias, mas deu certo. Dia 25 de março (2011), coloquei minhas malas no carro e fui comemorar junto da família e amigos a minha nova aventura. Parando pra pensar, agora até me considero corajosa.
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Depois de muitas despedidas, e agradeço novamente aos que não deixam de me pretigiar, embarquei num vôo para a "cidade maravilhosa" (com conexão em Brasília). Fui na janela (foto), mas fiquei frustrada porque o lado que eu estava não era o do que o sol nascia. Em Brasília, um rapaz surtou no aeroporto gritando escandalosamente que ia derrubar o avião com uma bomba. Fiquei indignada como a segurança do local e a Polícia Federal demoraram a agir. Se o sistema é falho na capital do Brasil, imagino o que deve acontecer pelo resto do país. E ele ainda dizia "Me prendam! Venham me prender!".

                                /por Gabriela Santana
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Aterrissando no Aeroporto de Santos Dumont, fiquei impressionada quão próximo ele é do porto. Encontrei-me com uma prima querida e seu namorado, visitei o apartamento deles e demos algumas voltas na Lapa. Geralmente, quando se pega um vôo pela madrugada veste-se roupas mais quentinhas. Entretanto, eu sabia que ia estar calor quando chegasse no Rio, sendo assim, coloquei uma bermuda, uma camisa leve e calcei uma sandália confortável. Para aquecer, um casaco básico foi o bastante. Estava frio, mas dava pra sobreviver.
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A última vez que andei nas ruas do Rio de Janeiro, tinha apenas 15 anos. Lembro que optei por festejar meu aniversário no Rock in Rio (2001), ao invés de ter algo tradicional. Confesso que não curti aquela multidão de 250 mil pessoas, e nem o excesso de cuidado ao caminhar pela cidade. Por outro lado, passear a pé pelo centro com os meus "guias" foi realmente fabuloso. Observei tudo com uma nova perspectiva.
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Já era sábado, dia 26 de março, quando subi a bordo do MSC Música. Como já tenho a experiência do contrato anterior, não havia nada de muito novo. O peso da mala, só percebi realmente quando tive que arrastá-la do hall do porto até a gangway do navio. Daí, lembrei que no check-in foi registrado 11 kg de sobrepeso. Fiquei pensando quem era que eu estava carregando dentro da minha bagagem - muita gente se ofereceu pra estar dentro dela!

Alimentação de tripulante


Confesso que, a princípio, considerei a comida razoável. Logo no segundo dia do meu primeiro contrato, conheci um rapaz que se serviu no Crew Mass (refeitório dos tripulantes) com seis pães e manteiga. Perguntei por que não tentava ao menos experimentar as outras opções, e ele apenas respondeu: "Você vai entender quando alcançar o sexto mês a bordo". Nem precisou esperar tudo isso pra captar a mensagem. Cheguei ao ponto de comer pão com alface e catchup, uma refeição inesquecível.
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Costumava soar irônico quando um passageiro afirmava que comíamos muito bem, acreditando piamente que nossa refeição era a mesma da servida no buffet. Felizmente, olhando numa perspectiva positiva, o contraste da comida de casa com a que temos a bordo contribui para quem precisa de dieta (meu caso!). É bem raro encontrar alguém que não perdeu peso seguindo à risca o menu destinado ao tripulante. E falo isso de um modo geral, os comentários são os mesmos independente da companhia que se trabalha.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Nota no Jornal O Estado - CE

Hoje, saiu uma nota no jornal O Estado (CE) sobre a minha partida. Ainda não contei à todos, mas durante o meu embarque como garçonete conheci algumas pessoas que gostaram da minha voz, e me ajudaram a realizar este novo contrato como cantora. Nessas horas em que o destino dá uma forcinha, temos muito o que agradecer a Deus. Sendo sorte ou benção, nada acontece sem esforço e fé naquilo que está se propondo a realizar. Acreditar que é possível atrai energias positivas, nunca esqueçam disso. Abaixo, segue a nota digitalizada. Obrigada também ao colunista Flávio Torres.  



quarta-feira, 23 de março de 2011

Rotina - Parte II

No cronograma constava que eu deveria começar ao meio dia no El Sombrero, o bar mais movimentado da piscina. Como o meu uniforme estava no alfaiate para ajustes, a Bar Secretary enviou-me ao buffet La Piazzeta. Adorei a idéia porque o clima lá fora estava no botão "fogo alto", no ápice mesmo do calor. Ainda faltavam trinta minutos até que abrissem o local para os passageiros almoçarem, dando tempo de conversar com o Bartender indonesiano a quem eu deveria me reportar, além de relembrar como se mexia no Micros. Logo apareceu uma garçonete brasileira que me mostrou como se dava o serviço por ali, e que diferente dos outros bares do navio o Piazzetta não servia drinks e cocktails. O ambiente era dividido em duas estações, sendo uma de responsabilidade do nosso departamento, e a outra dos Waiters do restaurante. Depois dela afirmar que estávamos na melhor sala de aula para se acostumar com o serviço, e eu comprovei a veridicidade da informação, passei a ver com outros olhos o incidente relativo ao fardamento. Os passageiros vão para almoçar e fazem pedidos simples, entre sucos, refrigerantes, água e cerveja. "Com, ou sem gelo" é a única coisa da qual precisava me lembrar de perguntar.
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Entre 15h30 e 16h, o buffet fechava. Independente de estar escrito no cronograma que eu deveria ficar até ás 17h, por exemplo, era comum sermos remanejados. Como o MSC Orchestra é um navio enorme e repleto de bares, e não sei dizer até que ponto tratava-se de desorganização da chefia, cheguei a trabalhar em mais de seis num só dia. Ás vezes, era enviada a um local desnecessariamente e o Bartender me pedia para retornar. Aos poucos fui perdendo a inocência em acreditar que o Bar Manager preparava a schedule de acordo com o tipo de cruzeiro, observando os focos de maior movimento. O que ele utilizava mesmo era o famoso Ctrl+C e Crtl+V, deixando o sufoco do remanejamento para os Assistants. Mesmo não tendo o uniforme da piscina, e este assunto já era de conhecimento geral, meu nome continuava na planilha do El Sombrero confirmando a estranha negligência com a elaboração dos horários de toda a equipe do departamento. Parando pra pensar, em tese, se eu estava no Sombrero a minha ausência era um desfalque, então eles chamariam de outro bar uma pessoa para ocupar a lacuna. O problema é que este alguém também sairia de onde estava escalado. Resumindo, a crise era cíclica.  

segunda-feira, 21 de março de 2011

O tic-tac dentro do navio

Na vida de um tripulante não existe dia da semana, e nem calculamos o tempo de modo convencional. Durante a temporada no Brasil, por exemplo, sabia-se que o navio aportava em Santos aos sábados, dias de embarque e desembarque. As noites de domingo destacavam-se por conta da festa do comandante (Captain's Party), que para nós significava "uniforme de gala" e a possibilidade de passar uma eternidade segurando bandejas com 18 copos, entre taças de espumante e martini. No período em que estávamos na Europa, conto nos dedos de uma só mão quem conseguiu visitar Corfú (na Grécia). É que todas as quartas-feiras tínhamos o General Drill - Exercício de Emergência Geral obrigatório aos tripulantes -, e este acontecia pela manhã quando a maioria dos passageiros estavam conhecendo a cidade. Geralmente, um navio de cruzeiro fica atracado durante o período da manhã ou da tarde (raramente os dois juntos), e o Drill começava exatamente por volta de 10h30 am, demorando tempo suficiente para nos aprisionar. Era quase impossível sairmos. Felizmente, particularmente a Grécia não me interessava. Depois de passar por Atenas, considerei minha dose de templos satisfatória, decidindo não mais sair com tanta frequência nesta região.  
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Outra coisa que nos recordava em qual dia da semana estávamos era o Daily Cocktail, a bebida promocional do dia. O passageiro perguntando, é um verdadeiro mico "indo e voltando" não saber. Se de supetão alguma chefia te pega sem ter a resposta, inclusive os ingredientes do drink e da garnish (enfeite do cocktail), o resultado ultrapassava o "pega no pé". Dependendo do Manager, é marcação cerrada mesmo, e com toda razão. É natural ter algum desprezo pelo chefe, e não me interpretem mal, isso existe em qualquer empresa e emprego. Mas o que não entendemos, e no navio a "revolta" era maior pela pressão de não ter aonde extravasar, é que devemos nos responsabilizar por nossos erros e negligência. Claro, a bordo não existe história de conversinha no Rh (setor de Recursos Humanos), então o efeito costuma ser aniquilador.          
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Logo que embarquei, descobri uma excelente maneira de contabilizar os dias até que meu contrato findasse. Trata-se de um cronograma que enumera os cruzeiros, o que veio bem a calhar aos distraídos como eu. A bordo, é bem comum as pessoas inciarem frases com um "No cruzeiro passado", ou "Faltam três cruzeiros para o meu desembarque", e ainda "No cruzeiro temático 'tal'". É um estilo peculiar de avaliar o tempo, no entanto o esperado, já que todo o cotidiano de um tripulante está condicionado à rotina do navio.

sábado, 19 de março de 2011

Caros amigos e leitores

Notícias de última hora!

Aqui, desejo abrir parênteses em meio à história do meu primeiro contrato com a MSC Cruzeiros, e informá-los que novamente estarei em alto mar. No dia 26 de março, próximo sábado, viajarei para a cidade do Rio de Janeiro onde embarco no MSC Música, um dos maiores navios da frota. No dia 29, ainda deste mês, inicia-se o cruzeiro de travessia rumo ao Mediterrâneo, onde serei transferida para o MSC Splendida. Imagino que devam estar curiosos sobre qual será minha função e se vou dar continuidade ao blog. Sim, durante o processo não me descuidarei de dá-los informações quentíssimas sobre tudo o que estará rolando. Por enquanto, desejo focar os textos na minha trajetória como Bar Waitress, então, aguentem a curiosidade e me desejem sorte! Obrigada à todos que têm me acompanhado, e aos navegantes de primeira viagem, sejam bem-vindos! 

sexta-feira, 18 de março de 2011

Rotina - Parte I

Não chega a ser proibido andar pela área de tripulantes sem o uniforme, entretanto, em alguns locais como o refeitório isso não era permitido. Entre as regras para quem deseja dar um pulinho no Crew Bar do MSC Orchestra, mesmo que só de passagem, era usar calçado fechado - pode até ser sandáias, mas tinha que ter o fecho atrás. Chinelos, nem pensar! Você acaba correndo o risco de ser convidado a se retirar. O crew card que recebemos quando embarcamos, além de servir como identidade/passaporte e chave da cabine, é o meio que utilizamos para fazer compras dentro do navio. Água é o ítem mais consumido entre os tripulantes. Observei que, debaixo da escrivaninha, a minha roommate tinha um pequeno estoque de seis garrafas d'água mineral de 3 litros cada. Ao me dar uma, conversamos rapidamente sobre coisas que eu deveria saber de antemão. Limpeza e regras de convivência dentro da cabine, como se utilizava o telefone e a quem eu deveria reportar os problemas no armário com defeito. Antes de sair, para facilitar, pregou um papel na parede com os seus horários e o do namorado. Concluí, então, que na prática eu teria dois companheiros de quarto. 
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Ás 10h, nós, e outros novatos dos demais departamentos, estávamos reunidos na sala de conferência para o safety meeting. Revisar todo o conteúdo dado durante o curso do STCW - post Mergulhando e combatendo fogo - é muito chato, e acredito que não exista outra palavra mais certa que classifique isso independente da relevância do assunto. Era o meu segundo dia, eu estava exausta. Nada que o instrutor dissesse entraria na minha mente. E foi dito e feito, depois de quase uma semana, não consegui decorar os códigos de emergência, os pontos de evacuação, entre outras coisas. Fui reprovada na prova, e tive que repeti-la. Ó, vida cruel!    

quinta-feira, 17 de março de 2011

Conhecendo local e serviço

Publicidades a parte, o MSC Orchestra é uma estrutura composta por 16 decks, com quase 300m de proa à popa - o equivalente a três quarteirões. Trata-se de um verdadeiro hotel de luxo digno de cinco estrelas. O navio comporta cerca de 3.100 passageiros, e emprega nada menos que 1 mil tripulantes. Do quinto ao sétimo deck, encontram-se inúmeros bares, dois enormes restaurantes, um teatro, um cassino e lojas de grifes/eletrônicos. No 14º deck, dois buffets, piscinas e jacuzzis (hidromassagem), além de outros bares. E, pra finalizar o resumo geral dos ambientes, no 16º deck a boate. Encerrando a visita, Anatoli nos levou ao maior e mais movimentado bar, o Savannah, dando início a um breve treinamento.
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Segurar adequadamente uma bandeja não é fácil. Em casa, treinei com o que tinha e deu pra ter uma idéia da melhor forma de distribuição do peso. Na nossa função cada um tem sua bandeja. Pode até ser considerada artigo pessoal, já que levamos pro quarto e ficamos com a mesma durante a maior parte do contrato. Cada um de nós foi colocado junto de um bar waiter/waitress diferente para aprender como se dava o serviço. Quando o passageiro faz o pedido, anotamos num manual check e solicitamos o cartão da cabine. No balcão, passamos tal cartão no Micros (máquina utilizada) a título de cobrança e, com a transação aprovada, é impresso um cheque cuja assinatura do cliente é necessária. São inúmeros os ítens, e o caminho até achar o correto e com o mesmo preço constado no bar list exige prática. 
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Pulando a parte da limpeza que realizamos naquela noite, já era quase duas e meia da manhã quando me liberaram. Antes de ir, chequei o meu horário e vi que começava ao meio dia. Me parecia razoável, até recordar que ás 10h tinha um safety meeting - reunião referente à estratégia de salvaguarda do navio. Quando cheguei na cabine, percebi que não tinha nem travesseiro e nem roupa de cama. Não havia dado tempo buscá-los em meio as adversidades relativas ao uniforme. Então, vesti o pijama vermelho de calças e mangas compridas que surripiei da mamãe, rezei e fechei os olhos. Só percebi que estava tremendo de frio quando minha roommate chegou, me agasalhou com um cobertor e ofereceu um travesseiro. Fiquei comovida com o gesto.   

Efeito dominó

Na hora de experimentar os uniformes ficou evidente que eu não estava só acima do peso. Há muito tempo já havia ultrapassado o limite traçado pelos médicos, e agora era mais uma na classe "obesidade" dentro das estatísticas. Sim, eu estava com 94 kg distribuídos em um corpo de 1,70 m. Mesmo hoje, quem vê fotos antigas não acredita que cheguei a tanto. E está certo que precisavam de alguns ajustes, mas foi desesperador perceber que só as peças masculinas cabiam em mim. Lembram quando comentei que coloquei na mala apenas calças sociais, mas que ao final eram saias que faziam parte do fardamento? Então! E para completar a única que eles tinham do meu tamanho estava com o zíper quebrado. Seguindo a orientação da Bar Secretary, fui ao costureiro na laundry, mas este não possuía nenhum da cor preta, somente brancos. O que fazer? Depois de muito sufoco, tensão e algumas reclamações, eles me liberaram para usar calça social. Até então, eu não imaginava que os problemas com o uniforme só estavam começando.  
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Com tanta correria, nem recordava mais a que horas deveríamos estar no Bar Office. Por mais esforço que eu faça não consigo puxar da memória algum momento em que eu não estivesse perdida e perturbada. De repente, já na cabine tentando me arrumar, me vi com aquela imensa mala aberta no meio do quarto sem nem saber por onde começar. Logo escutei o telefone tocar, e era a Nataliya falando com enormes pausas entre as palavras. Disse que todos estavam esperando por mim, e me perguntou quanto tempo ainda teriam que continuar a aguardar. Entendi perfeitamente o recado. Saí da cabine de cabelos soltos, sem nem conseguir colocar a gravata e os botões do colete. Ao chegar, deparei-me com todos me olhando de forma incrédula, afinal, ainda não estava devidamente arrumada. Acredito que conquistei a antipatia dos chefes do departamento naquele momento. Por mais que não fosse minha culpa os botões serem maior que as casas do colete, estava evidente que aquilo não ia passar batido. Os problemas aconteciam em efeito dominó, e se dizem que a primeira impressão é a que fica, a minha imagem estava entre as piores.

quarta-feira, 16 de março de 2011

"Bem-vindos ao inferno"

Se eu tivesse que escolher uma palavra que representasse a personalidade da minha primeira roommate, seria gentileza. Depois do primeiro baque de vê-la vestindo pijamas, esvaziando as gavetas e o armário que pertenciam ao namorado, até achei aconchegante o local. Ela me mostrou o meu lado da escrivaninha, as minhas gavetas, o estreitíssimo armário e a cama de cima. Falou que travesseiros e lençóis eu deveria providenciar na laundry. Estava tão nervosa que mostrei logo as fotos da minha família e amigos. Fiquei mais calada que o previsto, e logo me dirigi ao ponto de encontro marcado anteriormente pelo Anatoli, no Crew Bar - espaço designado aos tripulantes. Lá,  encontrei a minha colega de Fortaleza e, como tínhamos tempo, visitei sua cabine que praticamente não tinha rastros de antigos residentes, só muita poeira e um leve cheiro de naftalina. Fiquei desapontada por não termos ficado juntas. O desapego é algo que você se obriga a aprender. E depois de perceber que as pessoas não são aquilo que parecem, até pode ser mais fácil lidar com a situação imposta do que com a que optou cegamente. Em seguida, soou o alarme do exercício de emergência e esbarramos em alguns vizinhos brasileiros solidários em nos explicar que ainda não precisaríamos participar.
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Reunidos os quatro novatos no Bar Office, finalmente entendi a hierarquia da chefia. Ok. Confesso que não foi tão simples assim, mas deu pra ter uma idéia e depois confirmar com os veteranos as minhas conclusões. Anatoli era um assistente, ou melhor, Assistant Bar Manager. Ele e outros dois que ainda não conhecíamos trabalhavam rondando os bares, fiscalizando cada detalhe do estoque, balcão e serviço. Nataliya tinha a posição de Bar Secretary, e cuidava da contabilidade dos bares - caso necessário, também era escalada para fazer a ronda. E, por fim, o búlgaro mais temido do nosso departamento: Zvet, o Bar Manager. Misturando simpatia com frieza, nos perguntou o que sabíamos sobre bebidas, quais já tínhamos degustado, se conhecíamos as etapas de preparo de algum drink, e nos falou um pouco sobre a excelência no serviço que a empresa exigia principalmente durante a temporada na Europa. Nos deu algumas apostilas onde encontramos desde as leis regidas a bordo até o bar list (menu), com preços e ingredientes de cada bebida. Depois disso, nos dirigiu à sala do F&B Manager, cujo apelido era Maestro - com o passar do tempo, percebi que todos deste cargo são chamados assim, o que é bem curioso. Tratava-se do responsável pelos departamentos de comida e bebidas (superior do meu chefe). A assistente do Maestro era brasileira, e traduziu um pequeno discurso de boas-vidas versus regras do navio.  
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O momento mais traumatizante do meu dia, e vale ressaltar que ainda era o primeiro, foi quando nos levaram até a laundry para adquirirmos o uniforme. Tudo era muito longe, e é lógico que eu já estava perdida. Além de não prestativo, o brasileiro que nos guiou era atrevido, sem papas na língua. Deixou bem claro que o ambiente não era amigável e ainda falou "bem-vindos ao inferno", quando se despediu. Dois meses depois, ele conquistou "uma borracha no passado" por todas as piadinhas insolentes, quando o Bar Manager não o favoreceu na schedule (cronograma) referente ao primeiro atraque do ano no Rio de Janeiro. Ele é carioca, e seu filho era um recém-nascido que ainda não conhecia. O vendo trabalhar num bar sem passageiros, já que todos estavam em excursão pela "cidade maravilhosa", resolvi lustrar as bases de ferro do balcão sem me desanimar, afinal, era ele quem estava sendo desvalorizado como profissional e como pessoa.   

terça-feira, 15 de março de 2011

Primeiro impacto

Desculpem a demora, queridos leitores. Após uma pausa, motivada pelo feriado de carnaval (e etc.), finalmente chego ao grande momento. Um tapete vermelho, um toldo rodeado de flores proporcionando sombra e um grupo de animadores trajados de marinheiros. Esta primeira visão sabia que nada tinha a ver comigo, tratava-se apenas da recepção aos passageiros. Tanto próximo à proa (frente do navio), como mais ao centro, haviam entradas. Aos passageiros estavam destinadas: uma no mesmo nível do chão, referente ao quarto deck (vulgarmente conhecido como piso/andar); e outra no quinto deck, fazendo-se necessária uma escada. A entrada dos tripulantes localizava-se também no quarto deck, e de lá saiu um verdadeiro oficial italiano, alto e parecido com Elvis Presley, exceto pelo inglês que era muito esquisito. Ao finalizar a conversa com o rapaz da MSC que havia nos escoltado da sala da Polícia Federal no porto até o navio, atravessamos uma pequena passarela. Olhei o estreito trecho de mar que separava o concreto do aço, e quase fiz uma analogia com o passo que estava dando na minha vida, mas não tinha tempo pra reflexões, eu já estava na gangway com um homem de terno preto pedindo meus documentos. Ele, apesar de bonito, era mal encarado. Depois eu viria a descobrir que se tratava nada mais do que um security israelense, treinado pelo exército de Israel - se é que vocês compreendem o meu sarcasmo.
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Um ambiente belo e hostil. Se pararmos pra pensar, mesmo uma floresta - símbolo da harmonia entre os seres - é assim. Leva tempo até você se adaptar. Eu já estava confusa pra qual lado ficava a porta de saída, quando nos deixaram parados em frente a sala do Crew Purser. Ainda não sabia quem era, o que fazia, e se era meu chefe. Só sei que entrei na sala, escrevi num papel os bens que carregava comigo (notebook, celular, etc.), entreguei o certificado do STCW, o passaporte, o comprovante da vacina contra febre amarela e o contrato já assinado na agência em Fortaleza (esqueci de algo?). Depois tirei uma foto - horripilante, por sinal - e me mandaram esperar no corredor. Lá, conheci um rapaz de Curitiba que veio sozinho contratado para o mesmo cargo, e sofreu piores adversidades até chegar ali. Estávamos todos exaustos.
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Lembro que antes de embarcar, liguei pra casa e avisei da probabilidade de demorar alguns dias até poder entrar em contato novamente. Meu estômago e mente estavam revirados com tanta informação mal digerida. Logo apareceu um homem alto e de olhos azuis nos guiando até o Bar Office, um búlgaro chamado Anatoli. A princípio ele parecia querer nos deixar relaxados e, quando me perguntou "Como você está?", eu respondi "Tenho 24 anos". Foi a maior gozação. Minha mente estava bloqueada, mas ele parecia sensitivo e me entrevistou de forma tranquila. Em seguida, apareceu outra búlgara vestida de oficial, a Nataliya, e eles nos guiaram até nossas cabines. Cada um tinha um cartão magnético com o nome, o número do passaporte, o número da cabine, o cargo, e um espaço em branco onde seria colocado o safety number - referente a posição no exercício de salvaguarda - e o número do bote ou baleeiro. 
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Quando cheguei na minha suposta cabine, percebi que a minha roommate (companheira de cabine) morava com o namorado. De acordo com as regras do navio, só pessoas casadas ou com relação estável comprovada podem compartilhar o quarto, no entanto, existem concessões e vista grossa. E quando fazem parte do mesmo departamento é mais fácil manejar isso. O problema é que colocaram a minha colega de Fortaleza em uma cabine sozinha, então não entendi porquê cargas d'água me fizeram pivô daquela separação. Definitivamente, ainda não sabia o que me esperava. E o embrulho no estômago só aumentava.   

terça-feira, 1 de março de 2011

E finalmente...

...aterrissamos no aeroporto de Guarulhos (SP). Na ausência de qualquer auxílio por parte da agência ou da companhia de cruzeiros, ainda teríamos que saber como chegar no porto de Santos. Era por volta de quatro ou cinco horas da madrugada, e pensamos em um táxi, mas não caberia a bagagem de todos. Esperar até oito horas da manhã por um ônibus também não nos pareceu viável. Por fim, alugamos um carro. O único homem do nosso grupo já havia morado em São Paulo, e era familiarizado com as estradas da região, o que facilitou bastante. Depois de darmos uma parada pro café da manhã, perdi totalmente a noção de tempo e espaço. Inclusive, cheguei a pensar que o trajeto era superior a 150 km, enquanto não passava da metade. 
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O calor já estava infernal quando chegamos ao porto. Tivemos que lidar com a enorme bagagem, falta de estrutura e informaçãono no portão de embarque, e nem mesmo a empresa responsável pelo carro alugado sabia aonde deveríamos nos dirigir para agilizar a devolução. Isso tudo somado a fome e sede, além da disputa por espaço com a enxurrada de passageiros em espera, na minha visão assemelhava-se ao pandemônio. Demorou o bastante até encontrarmos a entrada e o ponto de encontro com os agentes da MSC. Eram inúmeros navios de cruzeiro, e tripulantes de diversos países. Passamos rapidamente pela Polícia Federal, e nos encaminharam até o navio. Jamais, em toda minha vida, tinha visto algo daquela dimensão de tão perto. Em instantes, o MSC Orchestra se tornaria minha mais nova casa.