"A verdadeira viagem não está em sair a procura de novas paisagens, mas em
possuir novos olhos" (Marcel Proust)







quarta-feira, 16 de março de 2011

"Bem-vindos ao inferno"

Se eu tivesse que escolher uma palavra que representasse a personalidade da minha primeira roommate, seria gentileza. Depois do primeiro baque de vê-la vestindo pijamas, esvaziando as gavetas e o armário que pertenciam ao namorado, até achei aconchegante o local. Ela me mostrou o meu lado da escrivaninha, as minhas gavetas, o estreitíssimo armário e a cama de cima. Falou que travesseiros e lençóis eu deveria providenciar na laundry. Estava tão nervosa que mostrei logo as fotos da minha família e amigos. Fiquei mais calada que o previsto, e logo me dirigi ao ponto de encontro marcado anteriormente pelo Anatoli, no Crew Bar - espaço designado aos tripulantes. Lá,  encontrei a minha colega de Fortaleza e, como tínhamos tempo, visitei sua cabine que praticamente não tinha rastros de antigos residentes, só muita poeira e um leve cheiro de naftalina. Fiquei desapontada por não termos ficado juntas. O desapego é algo que você se obriga a aprender. E depois de perceber que as pessoas não são aquilo que parecem, até pode ser mais fácil lidar com a situação imposta do que com a que optou cegamente. Em seguida, soou o alarme do exercício de emergência e esbarramos em alguns vizinhos brasileiros solidários em nos explicar que ainda não precisaríamos participar.
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Reunidos os quatro novatos no Bar Office, finalmente entendi a hierarquia da chefia. Ok. Confesso que não foi tão simples assim, mas deu pra ter uma idéia e depois confirmar com os veteranos as minhas conclusões. Anatoli era um assistente, ou melhor, Assistant Bar Manager. Ele e outros dois que ainda não conhecíamos trabalhavam rondando os bares, fiscalizando cada detalhe do estoque, balcão e serviço. Nataliya tinha a posição de Bar Secretary, e cuidava da contabilidade dos bares - caso necessário, também era escalada para fazer a ronda. E, por fim, o búlgaro mais temido do nosso departamento: Zvet, o Bar Manager. Misturando simpatia com frieza, nos perguntou o que sabíamos sobre bebidas, quais já tínhamos degustado, se conhecíamos as etapas de preparo de algum drink, e nos falou um pouco sobre a excelência no serviço que a empresa exigia principalmente durante a temporada na Europa. Nos deu algumas apostilas onde encontramos desde as leis regidas a bordo até o bar list (menu), com preços e ingredientes de cada bebida. Depois disso, nos dirigiu à sala do F&B Manager, cujo apelido era Maestro - com o passar do tempo, percebi que todos deste cargo são chamados assim, o que é bem curioso. Tratava-se do responsável pelos departamentos de comida e bebidas (superior do meu chefe). A assistente do Maestro era brasileira, e traduziu um pequeno discurso de boas-vidas versus regras do navio.  
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O momento mais traumatizante do meu dia, e vale ressaltar que ainda era o primeiro, foi quando nos levaram até a laundry para adquirirmos o uniforme. Tudo era muito longe, e é lógico que eu já estava perdida. Além de não prestativo, o brasileiro que nos guiou era atrevido, sem papas na língua. Deixou bem claro que o ambiente não era amigável e ainda falou "bem-vindos ao inferno", quando se despediu. Dois meses depois, ele conquistou "uma borracha no passado" por todas as piadinhas insolentes, quando o Bar Manager não o favoreceu na schedule (cronograma) referente ao primeiro atraque do ano no Rio de Janeiro. Ele é carioca, e seu filho era um recém-nascido que ainda não conhecia. O vendo trabalhar num bar sem passageiros, já que todos estavam em excursão pela "cidade maravilhosa", resolvi lustrar as bases de ferro do balcão sem me desanimar, afinal, era ele quem estava sendo desvalorizado como profissional e como pessoa.   

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