"A verdadeira viagem não está em sair a procura de novas paisagens, mas em
possuir novos olhos" (Marcel Proust)







quinta-feira, 5 de maio de 2011

Sarna a bordo!

Algumas semanas antes de descobrir a data do meu primeiro embarque, conheci uma pessoa na internet que trabalhava no porto do Rio de Janeiro. Ele falou que jamais teria coragem de embarcar por conta das medidas de higiene, e me convenceu a imaginar todos os tripulantes e passageiros conectados pelo sistema de ar condicionado, ou seja, o risco de contaminação era máximo. Não tenho dúvidas sobre os cuidados da chefia a bordo quanto a inspeção de cabine, por exemplo, mas outra coisa que aprendi nessa vida é que “tudo não é o suficiente”. Já falei isso antes?
Ao contrário do que percebi quanto as instalações do MSC Orchestra, no MSC Armonia encontrei tudo sempre em reparos. O departamento de engenharia não tinha folga mesmo, independente se fossem lâmpadas ou maquinário. Para mim, como tripulante, senti o problema na pele também. Não foi diagnosticado escabiose, mas de acordo com a enfermeira, a minha pele teve uma reação alérgica à água. Até que eu me adaptasse ao novo navio, precisei banhar-me com água engarrafada e camomila. A minha roommate assustou-se ao encontrar garrafas d’água dentro do banheiro, achou que eu já estava na fase dos “surtos a bordo” – papo para outro post.  
O que aconteceu no navio MSC Armonia com os 23 brasileiros desembarcados com escabiose não me surpreende. Aliás, não é surpresa pra qualquer ex-tripulante. Entretanto, há casos e casos. Primeiro, não se sabe como aconteceu a transmissão. O navio estava em dry-doc, o que significa que ele estava aportado por algumas semanas em reparos na mesma cidade, e os tripulantes tinham sim mais liberdade de ir e vir. Não podemos deixar de pensar na possibilidade da doença ter se espalhado a partir de um contato corporal mais íntimo. O que quero explicar aos meus leitores é que coisas assim são fatalidades que podemos evitar, mas que no entanto independem do lugar. Apenas uma minoria deixaria de fazer um itercâmbio, por exemplo, só porque não conhece o sistema de saúde de tal cidade.
Em algumas notas e matérias pela internet, encontramos discussões sobre direitos humanos e trabalhistas. Como já disse uma colega blogueira que já viveu em alto mar, os gregos acreditam que existem três tipos de homem: o vivo, o morto e o marinheiro. As pessoas costumam duvidar, mas a vida a bordo é completamente diferente do sistema de leis e regras que temos em terra. Essa conversa bonita sobre “direitos humanos e trabalhistas” não funciona quando estamos tratando de um modelo neo-escravista.
Sábado, dia 30 de abril, foi transmitido pelo Jornal Nacional (Rede Globo) a cobertura dos fatos. Independente da forma como se deu o diagnóstico, ficou evidente o abandono, negligência e total descaso da empresa quanto aos tripulantes infectados.  
Abaixo, segue a matéria.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Alimentação de tripulante – A máfia da comida

Findadas as dúvidas em outros posts, já é de conhecimento geral o abismo que separa a comida dos passageiros do que é servido nos bastidores. Imagino a curiosidade de todos em saber o que acontece com o que sobra no buffet e no restaurante a la carte. Diariamente, toneladas e toneladas de comida passam por um processo de limpeza e trituração até serem despejadas no mar, a milhas de distância da costa. O mesmo acontece com o lixo e dejetos. Não sou especialista nisso, mas é bom saber que existem várias leis em favor do meio ambiente determinando os tipos de resíduos, a espessura que devem estar após triturados, e a que distância devem ser largados.
Por mais absurdo que pareça, alimentação é um dos tópicos mais polêmicos a bordo. Para começo de conversa, é proibido conservar comida na cabine. Havendo inspeção, e dependendo do que possa ser encontrado, é uma advertência propícia ao desembarque. O ideal é que a alimentação servida no Crew Mass (estilo self-service) fosse adequada. Infelizmente, nem o menos dos exigentes com comida aguenta muito tempo em pé sem correr à lanchonete mais próxima do porto, ou apelar para complexos vitamínicos. Para os que trabalham no buffet e restaurante é mais fácil lidar com a situação. Contanto que não sejem pegos por um oficial ou superior - e estes costumam ser nada compreensivos - é possível comer disfarçadamente dentro da pantry (despensa de navio). Aos que não têm esse acesso, existe o sistema da máfia da comida. Seja por amizade, influência, ou troca por outro tipo de máfia, é bastante comum tal irregularidade.
Dentro dos bolsos, por debaixo das calças e saias, amarrada nos tornozelos, em saco de roupas sujas, não importa a forma. Os tripulantes evoluem com novas idéias e maneiras de transportar comida – entre outras coisas – e, como já dizia Goethe, provando que “Poderosa é a lei; mais poderosa, contudo, é a necessidade”.   

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Break/Time Off


Relembrando o que foi esclarecido nos primeiros posts, não existe dia de folga (day off). Principalmente nos momentos em que o navio está em alto mar, todos os setores estão em plena atividade. Aos que não possuem familiaridade com a linguagem desse sistema de trabalho, Break é considerado o espaço de tempo entre um turno e outro. Pode ser de 10 min, ou de 4 horas. Se não há interferência no cronograma, esse período é contabilizado apenas como uma pausa.  
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Em alguns departamentos os tripulantes costumam trabalhar as 11 horas quase que ininterruptas, com direito a uma ou duas horas de break. Por vezes, isso acontece de forma fatiada (30 minutos aqui, 30 minutos ali), fato bastante comum nos cargos relacionados à limpeza e no Buffet. Nos departamentos Bar e Restaurante os breaks são considerados mais interessantes, até porque a schedule (cronograma) não costuma ser fixa. Então, no caso, depende mais da chefia e da sorte.
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Por outro lado, aos que embarcam com o desejo de aproveitar a possibilidade de trabalho versus conhecer o mundo, fico feliz em dizer que existem os considerados presentes divinos: Time Off. "Capo, por favor me libera pra descer no próximo Pireus!", é um exemplo de frase que faz parte do cotidiano de um tripulante. É raro a chefia tomar a inciativa de te liberar da lavoura, mas isso também existe, e você pode conseguir a graça de trabalhar umas horinhas a menos. Algumas pessoas fazem boas relações a bordo, conhecem chefias com influência e a vida pode se tornar bem mais agradável (em alguns casos, apenas suportável). Mas é sempre bom checar a custo de quê vem essa troca. Ninguém quer sair de casa João e voltar Joana, ou mudar de nome pra Madalena por conta de, deixe-me lembrar, "horinhas a menos". É difícil julgar, costumo dizer que para manter os valores morais intactos e não ofender ninguém, o melhor é sair pela tangente. É uma estratégia da qual a técnica só a vida ensina. Como boa aluna que sou, aprendi.

terça-feira, 5 de abril de 2011

A título de registro - Dança do cogumelo na Espanha

Dando uma geral nos meus arquivos, encontrei um video curtinho feito por mim em Málaga (Espanha) e senti uma enorme vontade de compartilhar com vocês. De fato, pretendo falar mais sobre os países por onde passei enquanto estive a bordo, então considerem isso uma prévia. Nesta "obra cinematográfica" (pausa para risadas), apresento muito resumidamente a Catedral de Málaga. E sinto muito aos que gostariam de mais detalhes - fiquei dando voltas com a cabeça procurando por uma placa informativa - o jeito é apelar ao pai dos distraídos, Google.
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Para compreender o subtítulo da postagem, só conferindo o video. De antemão, agradeço ao dançarino pelo entretenimento.



Sign Off

Algo que muitos temem - e outros procuram - é o desembarque precoce. A expressão "Sign Off" tem como significado pedido de desembarque, e isso pode ser solicitado pelo tripulante por motivos pessoais, ou quando o mesmo acata a decisão tomada pela gerência de se retirar do cargo. Outra forma de Sign Off da qual os tripulantes são obrigados a assinar, é quando a pessoa em questão atinge a quota máxima de Warnings (advertências) expressa no manual de regras a bordo.
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Outro "Parênteses":

Por motivos que eu prefiro não revelar no momento, e infelizmente não dá pra adiar mais, venho aqui anunciar que estou novamente em casa. Infelizmente as coisas não acontecem sempre como planejamos, e depois de uma semana a bordo estou de volta. Imagino inúmeros pontos de interrogação, e confesso que não tenho resposta pra tudo. Quando ficar claro se vou embarcar novamente ainda nesta temporada, ou não, eu aviso. Por enquanto, evitarei falar a respeito ou iniciar as minhas divagações filosóficas, incluindo pensamentos que começam com o "nada acontece por acaso". Desejo a compreensão de todos, e obrigada pela torcida!

quarta-feira, 30 de março de 2011

Abrindo "Parênteses"

Aos distraídos, "Parênteses" é um quadro especial onde falo sobre o meu embarque atual. Recaptulando, de fevereiro a outubro de 2010, realizei o meu primeiro contrato como Bar Waitress. Depois de passar dois meses no MSC Orchestra, fui transferida para o MSC Armonia, onde estive por mais um semestre. Fiquei em casa por quase seis meses, e agora estou no MSC Música fazendo o cruzeiro de travessia para a Europa, desta vez como cantora.
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Obviamente, não foi de paraquedas que eu caí nessa profissão. Estudei quase dez anos de técnica vocal italiana e tive várias experiências musicais marcantes, apesar de nem todas terem sido bem - ou até mesmo - remuneradas. Quando atingi a maior idade, deixei a música em segundo plano e passei a priorizar a minha graduação em Comunicação. Costumo pensar que, cantor que é cantor, independente de tempo e local expressa-se cantando. Tanto em momentos tristes como felizes, cantar chega a ser involuntário. Foi assim que as pessoas a bordo perceberam que eu dava voz a canções de forma semelhante a um profissional, até descobrirem que eu fazia parte deste meio. Desde então, a esperança de acordar a "música" que dormia dentro de mim me fez pausar o resto dos meus planos, e dar a mim e a "ela" uma nova oportunidade de seguir juntas.

Parênteses I: Novamente a bordo


Já fazia muito tempo desde meu último tranquilo sono. Aguardar uma data de embarque é o mesmo que esperar o resultado daquela tão esperada entrevista de emprego. Você fica de olho no telefone e na caixa de e-mails, roendo as unhas de tanta ansiedade e chegando a pensar que talvez seja a hora de aplicar o plano B. A princípio, o combinado era que eu embarcasse no porto da minha cidade. Sim, a última parada do MSC Música antes de fazer a travessia para a Europa será em Fortaleza, dia 2 de abril. Infelizmente, de acordo com o que me fora informado - e pelo que entendi, as autoridades locais não permitem alguns tipos de embarque naquele porto. Ou seja, tive que seguir ao Rio de Janeiro para conseguir embarcar.
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Diante de tantas adversidades que a vida impõe, as piores são as que o nosso pessimismo energiza. Então, mesmo quando a mudança não for tão boa quanto se espera, o melhor é encarar o fato como uma chance de novas possibilidades. Foi dureza aprontar tudo em cinco dias, mas deu certo. Dia 25 de março (2011), coloquei minhas malas no carro e fui comemorar junto da família e amigos a minha nova aventura. Parando pra pensar, agora até me considero corajosa.
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Depois de muitas despedidas, e agradeço novamente aos que não deixam de me pretigiar, embarquei num vôo para a "cidade maravilhosa" (com conexão em Brasília). Fui na janela (foto), mas fiquei frustrada porque o lado que eu estava não era o do que o sol nascia. Em Brasília, um rapaz surtou no aeroporto gritando escandalosamente que ia derrubar o avião com uma bomba. Fiquei indignada como a segurança do local e a Polícia Federal demoraram a agir. Se o sistema é falho na capital do Brasil, imagino o que deve acontecer pelo resto do país. E ele ainda dizia "Me prendam! Venham me prender!".

                                /por Gabriela Santana
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Aterrissando no Aeroporto de Santos Dumont, fiquei impressionada quão próximo ele é do porto. Encontrei-me com uma prima querida e seu namorado, visitei o apartamento deles e demos algumas voltas na Lapa. Geralmente, quando se pega um vôo pela madrugada veste-se roupas mais quentinhas. Entretanto, eu sabia que ia estar calor quando chegasse no Rio, sendo assim, coloquei uma bermuda, uma camisa leve e calcei uma sandália confortável. Para aquecer, um casaco básico foi o bastante. Estava frio, mas dava pra sobreviver.
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A última vez que andei nas ruas do Rio de Janeiro, tinha apenas 15 anos. Lembro que optei por festejar meu aniversário no Rock in Rio (2001), ao invés de ter algo tradicional. Confesso que não curti aquela multidão de 250 mil pessoas, e nem o excesso de cuidado ao caminhar pela cidade. Por outro lado, passear a pé pelo centro com os meus "guias" foi realmente fabuloso. Observei tudo com uma nova perspectiva.
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Já era sábado, dia 26 de março, quando subi a bordo do MSC Música. Como já tenho a experiência do contrato anterior, não havia nada de muito novo. O peso da mala, só percebi realmente quando tive que arrastá-la do hall do porto até a gangway do navio. Daí, lembrei que no check-in foi registrado 11 kg de sobrepeso. Fiquei pensando quem era que eu estava carregando dentro da minha bagagem - muita gente se ofereceu pra estar dentro dela!